Encontrado por mero acaso num alfarrabista belga, Histoire d’une Maison não é certamente uma das obras mais conhecidas de Viollet-le-Duc, arquitecto francês e um dos principais pensadores do Património no século XIX, a par do inglês John Ruskin. A síntese na contra-capa torna a obra particularmente apelativa, ao considera-la um estudo relevante das relações entre arquitecto e utilizador. Publicado pela primeira vez em 1873, revela-se muito mais do que isso, constituindo um ensaio surpreendentemente actual.

Assumidamente crítico do ensino e da arquitectura do seu tempo, tendencialmente voltado para a aplicação irreflectida e descontextualizada de “estilos”, meramente formalista, Viollet-le-Duc constrói um verdadeiro curso prático de arquitectura, essencial a qualquer jovem arquitecto.

Com o pretexto de um romance, o narrador expõe os procedimentos e métodos da arquitectura, desde a definição do programa, reconhecimento das características do terreno, concepção funcional, interacção com o cliente, projecto de execução, acompanhamento de obra e inspecção dos trabalhos. As noções práticas vão sendo intercaladas com reflexões teóricas acerca das condicionantes disciplinares da arquitectura, da relação com a memória, o uso, o cliente e o ensino. Mantêm a sua actualidade, mesmo 150 anos depois, já que nunca são apresentadas “receitas” (p.63):

Um tratado de construção é bom para habituar o espírito a conceber e a executar segundo certos métodos; fornece os meios de resolver os problemas que se colocam; mas não os resolve, ou, pelo menos, não resolve mais do que um em mil.

Assim, o autor salienta que o único método da arquitectura é o raciocínio e a observação atenta das circunstâncias (p.150):

Na arquitectura há um método a seguir em todos os casos que se apresentam, não há receitas nem procedimentos. O método não é outro que a aplicação da capacidade de raciocinar em todos os casos particulares. É na observação das circunstâncias, dos factos, dos hábitos ou das condições de higiene que se apoiará o raciocínio antes de conceber a obra.

Simultaneamente apresenta sistematizações claras dos processos de construção da época e da importância  da inspecção e diagnóstico para compreender as origens de potenciais anomalias e evitar o seu aparecimento nas novas construções. As soluções construtivas representadas e explicadas ganham particular relevância hoje em dia, já que são frequentemente as encontradas nos processos de reabilitação – desde as estruturas de madeira às argamassas de cal, passando inclusivamente pela selecção e talha de pedra.

Sobre as formas de construir tradicionais, aperfeiçoadas ao longo do tempo, o narrador afirma (p.67):

(…) podemos admitir que somos menos instruídos que os nossos antepassados ou que perdemos o hábito da observação que lhes era familiar.

No entanto, Viollet-le-Duc é crítico da preservação do Património estanque e congelada no tempo – que sacrifica o conforto para conservar a tradição (p.140) – defendendo antes a leitura atenta dos significados e das motivações das formas de fazer (p.152):

Devíamos antes dizer: “aqui estão os resultados da experiência adquirida desde a antiguidade até ao nosso tempo; partindo daqui, fazei como faziam os nossos antepassados, aplicai a capacidade de raciocinar, empregando os conhecimentos adquiridos mas obedecendo ao que exige o tempo presente. Não vos é permitido ignorar o que foi feito antes de vós, é um terreno comum, um bem adquirido, é necessário compreender o seu desígnio e valor; mas adicionai-lhe o contributo da vossa inteligência, dai um passo em frente, não retrocedais.

Constitui, sem dúvida, uma obra relevante e de leitura recomendável para quem, em início de carreira, pretende suprir as lacunas do ensino académico. Interessante também para consulta pontual das questões práticas dos materiais e pormenorização construtiva.

Estimula ainda a importante reflexão sobre a valorização da arquitectura tradicional, de desenvolvimento sobretudo no período medieval, e manifestação das características locais, que era até então considerada uma arquitectura menor e sem interesse patrimonial. Uma questão a aprofundar nos Entretiens sur l’Architecture e no Dictionnaire Raisonné de l’Architecture.

*Viollet-le-Duc, E. (1873). Histoire d’une Maison (1978 ed.). Paris: Berger-Levrault.